sábado, 6 de junho de 2009

100 - " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA"

"Arte" LuisD.


FIALHO D'ALMEIDA
José Valentim Fialho d'Almeida
Nasceu a 07 de Maio de 1857, signo de touro.
Vila de Frades, perto de Beja, Portugal.
Médico(1855), jornalista, político . . .
*
CANTOePALAVRAS
Contos, 1881; A cidade do Vício. 1882; Os Gatos, 1889/94;
Pasquinadas, 1890; Lisboa Galante, 1890; Vida Irónica, 1892;
O País das Uvas, 1893; Madona do Campo Santo, 1896;
À Esquina, 1903 . . .
*
A casa para onde me mudei nada tinha de confortável e
resguardada. Sómente alta e mais clara que o primeiro
andar da Rua do Sol.
Devia já ser velha; os tectos baixos e o soalho carunchoso
tremiam em os chinelos arrastando. Pelos buracos do rodapé,
as baratas saltavam de noite aos rebanhos, em cata de alimento.
Mas de manhã a coisa mudava - rompia alegremente o Sol, como
um companheiro folgazão, e no parapeito da varanda, as pombas
do marceneiro vinham arrulhar beijando-se, com esse
movimento coquette de cabecinhas graciosas,
em que parece vivertodo um mundo de pequenos
segredos de boudoir. Um pé de eloendro florido chamava
as abelhas, abrindo-lhes as corolas róseas
num cândido aroma de beijos, e em anfiteatro, alargando-se da
Baixa ao cimo das colinas de uma banda, e até ao azul do rio
da outra, a casaria da cidade, liberta dos últimos vapores da
noite. expunha as suas fachadas brancas, monótonamente
cortadas de janelas, sobre que os tectos caíam em pirâmides
alongadas, e de que as chaminés furavam agressivamente aqui
e além, fumando na risonha luz recém-nascida.
A primeira coisa que eu pude notar na vizinhança,
foi que não haviauma cara bonita. Em baixo, na loja do prédio
fronteiro, a mulher dolugar, suja e gasta, era repelente com
seus enormes sapatos de ourelo e o corpete do vestido
constantemente descerrado, mostrando a carne trigueira e
chuchada dos seios. No primeiro andar, engomadeiras
com cara de homem, cabeludas e amarelas, vinham raro à janela
para lançar olhares oblíquos sobre as casas alheias.
Por cima era uma mestra- ao lado um veterano eternamente
à janela, de barrete azul, fumando no seu cachimbo disforme.
Na rua estreita e torturosa, todos se conheciam;
crianças brincavam descalças e ranhosas, tocando latas;
de manhã erauma gralhada de janela para janela sobre a
carestia das coisas e as carrapanas dos maridos -
e o mesmo padeiro servia as famílias,demorando-se de palestra
pelas ercadas. À dez horas, enquanto fazia o almoço,
sentia um rumor de passos cansados, e uma voz dizer de quando
em quando - espera, homem, vai devagarinho. Alguma vez dás
comigo pela escada abaixo"!
Era o vizinho do lado, o cego da rabeca, descendo com o
pequeno. Iam para o giro do dia, enquanto a velhota ficava
enrolada em cobertores e meio paralítica das pernas. Sucedia
topar com eles pelas ruas. O pai velho, tipo comum dos
cegos famintos, com a sacola pendente,rabeca a tiracolo por
cordão verde e sujo, o chapéu amachucado, véstia de saragoça.
O hábito de cantar para as janelas, havia-o deitado um
pouco para trás, os olhos escancarados tinham uma
serenidade vítrea, a boca era um nada atormentada nos cantos . . .
Em certos dias corriam a cidade inteira,
becos lôbregos e ruas humildes dos antigos
bairros, onde parece errar ainda agora uma
legenda de facadas e a bulha de alterações vadias.
À noite, internavam-se pelos baixos cafés de oprerários,
Alfama, Mouraria e Bairro Alto; e ali amachucados a
um canto, enquanto gemia a rabeca, o rapaz erguendo
a voz dizia as desgraças dos degredados e as lamentações
do Vimioso, terminando por estender o chapéu à esmola
dos que bebiam. Eram os únicos tristes da rua aqueles
expulsos da fortuna, a velha que ninguém via, o cego
e o rapaz macilento.
voltavam tarde, extenuados.
- Vá homem, vá, parece que não tens força nas pernas!
dizia o cego ao pequeno.
Sucedia, por vezes, Miguel recordadr que não havia
petróleo em casa, que as provisões estavam por
pagar no João tendeiro, e não seria fiado real na manhã
seguinte se não fosse de logo paga a pequena despesa.
Detinham-se então na escada ou à boca de alguma loja.
O pequeno estendia a mão tenra e roxa, e nela o pai
deixando cair vagarosamente e com pena, uma a uma, num
tlin-tlin metódico, as pobres moedas recolhidas no
trajecto do dia.
Às vezes era pouco, tres, quatro vinténs.
- Bendito seja Nosso Senhor! suspirava o cego, e passavam
sem luz essa noite.
Era nos domingos mais prósperos a esmola e triplicava a receita.
Dizia o cego:
-Sempre é dia em que Deus Nosso Senhor descansou.
Por vezes, até, uma pobre senhora, compassiva ante
a velhice daquele homem, sem queixa mordendo as
misérias do desamparo, oferecia-lhe um pouco de fato,
restos de refeição. Era um prazer, que se poupava o jantar
daquele dia. E diante do pequeno Miguel, cujos olhos vagos
e interiores pareciam absortos numa contemplação lunática,
o cego desenrolava carinhos doces e meigas insistências para
que trincasse os melhores bocados, perguntas repetidas
sobre se tinha frio, dores de cabeça, os pés molhados . . .
Rareavam de inverno as esmolas; mal se podia andar na rua,
que a lama cuspida dos trens enchia tudo, e eram inclementes
e eternas as goteiras dos telhados pingando sobre quem
passava sem cobertura. Em tempos daqueles nem os garotos
da rua queriam música - as crianças dos vários andares,
as melhores freguesas das pobres valsa e cantigas que o
velho executava na rabeca não podiam chegar à janela; se
pediam esmola, respondiam logo - Tenha paciência!
Além disso um horror que a polícia os fisgasse em
flagrante mendicidade . . . que seria depois, da velhota?
O asilo glacial em que as cabeças estão cheias de parasitas
e os estômagos vazios de alimentos, seguir-se-ia
enquadrado na pressão soberba e fria dos fiscais e
administradores; separá-los-iam brutamente, o velho
para a caserna com outros inválidos, como ele sem valia,
a criança para a Correcção, em que a lividez é patibular.
Nesses amargos dias era necessário comer a rações.
Duma vez tinham feito um pataco. E a velhota,
coitada, sem remédio!
A hora do jantar retardou-se naquele dia. Quando era
noite, o velho falou em irem comer alguma coisa.
Queixou-se de não ter vontade, e deu ao Miguel o
dinheiro para que fosse comprar pão. A criança
olhou-o com uma espécie de surpresa ingénua;
à luz do gás duma loja viu lágrimas nos cílios
trémulos do pai, cuja face cavada tinha uma cor
terrena de angústia.
E sem saber porquê pôs-se a soluçar à esquina,
longe dele, para que não fosse ouvido.
Ah! era bem negra aquela vida, era!
*
FIALHO D'ALMEIDA
"O Homem da Rabeca"
A Cidade do Vício

"Orquidea, BRASSIA REDE X ETERNAL WIND" Foto LuisD.
 
CÂNDIDO GUERREIRO
Francisco Xavier Cândido Guerreiro
Nasceu em 03 de Dezembro de 1871, signo de sagitário.
Alte, Loulé, província do Algarve, Portugal.
Advogado, dramaturgo, poeta . . .
Cursou Direito na Faculdade da Universidade de Coimbra, 1907.
Participou do grupo "Renascença Portuguesa".
Homenagens: Escola Profissional "Cândido Guerreiro" em Alte.
Faleceu em 11 de Abril de 1953.
*
CANTOePALAVRAS
Rosas Desfolhadas, 1895; Pétalas, 1897;
Avé Maria, 1900; Sonetos, 1904; Balada, 1907;
Eros, 1907; Glicínias, 1925; Promontório Sacro, 1929;
Em Forli, 1931; Rainha Santo, 1934; Auto das Rosas de Santa
Maria, 1940; Às Tuas Mãos Misericordiosasa, 1943;
Sulamitis, 1945; Avante e Santiago, 1949; Uma Promessa, 1950 . . .
*
I
Meu Portugal, oh místico romeiro,
Por tempestades, ventanias, Sóis,
Trocaste laranjais e rouxinóis
- o rouxinol de Bernadim Ribeiro . . .
-
Meu Portugal - Poeta e marinheiro, -
Padrões que tu ergueste são faróis:
Ardem nêles as almas dos heróis,
A lâmpadas votivas de cruzeiro . . .
-
E, oh nûncio de más novas e desgraça,
Oh velho do Restelo, o teu agoiro,
O teu falar de más palavras, vence-o
-
O génio augusto e tutelat da Raça,
Falamdo em nós mais alto, imorredoiro . . .
- Tu, oh espectro fatídico, - silêncio! . . .
*
CÂNDIDO GUERREIRO
"Sursum Corda!"
Promontório Sacro
*
"Largada" Ilustração de Acácio Lino, Foto LuisD.
II
No ressurgir magnífico e oriundo
Do sonho cabe um século distante,
E revive e palpita neste instante,
- Num minuto do dia moribendo . . .
-
E surdem outros barcos . . . Vêm do fundo
Da História Trágicò-Marítima . . . E ante
Os meus olhos atónitos, ovante,
Tôda uma armada sulca o mar jucundo . . .
-
Por entre a chusma gemem as guitarras . . .
Celeuma. Movimento. Erguem-se amarras . . .
Lá vão, na claridade momentânea,
-
De velas enfunadas, alto mar . . .
-Sôbre a nau que tem muito que contar
Vai içado o sinal de capitânea . . .
*
CÂNDIDO GUERREIRO
"Largada"
Promontório Sacro"Meu Jardim, Orquidea DENDROBIUM" Foto LuisD.

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