sábado, 13 de junho de 2009

090 - Carlos Drummond de Andrade " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA "

* CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE *
Nasceu 31 de outubro de 1902, signo de escorpião,
Itabira do Mato de Dentro, interior do Estado de
Minas Gerais, Brasil.
O pai, Carlos de Paula Andrade, e mãe Julieta Augusta
Drummond de Andrade.
"Carlito", como era chamado pelos amigos. Farmacêutico,
porém não exerceu. Chefe da secção, "História da Divisão
de Estudos e Tombamento da Diretoria do Património
Histórico e Artístico Nacional", Rio de Janeiro, 1945.
Um dos maiores representantes da Poesia do século XX,
da Língua Portuguesa. . .
Homenagens: Premio "Jabuti", 1968 . . .
Estilo Modernista.
*
CANTOePALAVRAS
Alguma Poesia, 1930; Brejo das Almas, 1934;
Sentimento do Mundo, 1940; Poesias (José), 1942;
Confissões de Minas (crônica), 1944;
A Rosa do Povo, 1945; Gerente (conto), 1945;
Poesia Até Agora, 1948; Contos de Aprendiz (conto), 1951;
A Mesa, 1951; Claro Enigma, 1951; Passeios na Ilha
(crônica), 1952; Viola de Bolso, 1952;
Fazendeiro do Ar; Poesia Até Agora, 1954;Fala Amendoeira
(crônica), 1957; A Vida Passada a Limpo, 1959;
Lição das Coisas, 1965; Cadeira de Balanço (crônica), 1966;
Versiprosa, 1967; Boitempo, 1968;
A Falta que Ama, 1968; O Menino Antigo, 1973;
As Impurezas do Branco, 1973; A Paixão Medida;
Os Dias Lindos (crônica), 1977; Contos Plausíveis, 1985;
Boitempo II e Boitempo III. . .
*
I
E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
a noite esfriou
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protestar?
e agora José?
-
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora José?
-
E agora José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incerência,
seu ôdio - e agora?
-
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta,
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
-
Se você gritasse,
se você gemesse.
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse ,
se você morresse . . .
Mas você não morre,
você é duro, José!
-
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"José"
*
II
Velho CHAPLIN:
as crianças do mundo te saúdam.
Não adiantou te esconderes na casa de areia dos setenta anos
refletida no lago suíço
Nem trocares tua roupa e sapatos heróicos
pela comum indumentária mundial.
Um guri te descobre e diz: Carlito
C A R L I T O - ressoa o coro em primavera.
-
Homens apressados estacam. E readquirem-se
Estavas enrolado neles como bola de gude de quinze cores
concentração do lúcido infinito.
Pulas intato da algibeira.
Uma guerra e outra guerra não bastaram
para secar em nós a eterna linfa
em que, peixe, modulas teu bailado.
-
O filme de 16 milímetros entra em casa
por um dia alugado
e com ele a graça de existir
mesmo entre os equívocos, o medo, a solitude mais solitária
Agora é confidencial o teu ensino,
pessoa por pessoa,
ternura por ternura,
e desligado de ti e da rede internacional de cinema
o mito cresce.
-
O mito cresce, CHAPLIN, a nossos olhos
feridos do pesadelo cotidiano.
O mundo vai acabar pela mão dos homens?
A vida renega a vida?
Não restará ninguém para pregar
o último rabo de papel na túnica do rei?
Ninguém para recordar
que houve pelas estradas um errante poeta desengonçado,
a todos resumindo em seu despojamento?
-
Perguntas suspensas no céu cortado
de pressentimentos e foguetes
cedem à maior pergunta
que o homem dirige às estrelas.
Velho CHAPLIN, a vida está apenas alvorecendo
e as crianças do mundo te saúdam.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"A Carlito"
Lição de Coisas
*
III
Amar um passarinho é coisa louca.
Gira livre na longa azul gaiola
que o peito me constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola
-
É amor meação? Pecúlio? Esmola
Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.
-
O passarinho baixa a nosso alcance,
e na queda submissa um vôo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,
-
outro romance ocluso no romance.
Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto(não é ave) sua essência.
**
Batem as asas? Rosa aberta, a saia
esculpe, no giro, o corpo leve.
Entre músculos suaves, uma alfaia,
selada, tremeluz à vista breve.
-
O que, mal percebido, se descreve
em têrmos de pelúcia ou de cambraia,
O que é fogo sutil, soprado em neve,
curva de coxa atlântica na praia,
-
Vira mulher ou pássaro? No rosto,
essa mesma expressão aérea ou grave,
esse indeciso traço de Sol-Pôsto,
-
de fuga, que há no bico de uma ave.
O mais é jeito humano ou desumano,
conforme a inclinação de meu engano.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"Sonetos do Pássaro"
A Vida Passada a Limpo
"Ave do Brasil, Araras"
*
IV
O passarinho dela
é azul e encarnado.
Encarnado e azul são
as cores do meu desejo.
-
O passarinho dela
bica meu coração
Ai ingrato, deixa estar
que o bicho te pega.
-
O passarinho dela
está batendo asas, seu Carlos!
Ele diz que vai-se embora
sem voce pegar.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"O Passarinho Dela"
Brejo da Alma
*
V
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
-
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"No Meio do Caminho"
Revista de Antropofagia, 1928.
*
VI
Gastei uma hora pensando em verso
que pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"Poesia"
Alguma Poesia
*
"Meu Jardim", Flor de Maio, Foto LuisD.
VII
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e mal amar
Amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
-
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sózinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ância?
-
amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
-
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"Amar"
Claro Enigma
*
VIII
Este, de sua vida e sua cruz
uma canção eterna solta aos ares.
Luz de ouro vazando intensa luz
Por sobre as ondas altas do vocábulos.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" O Poeta "
A Paixão Medida
*
IX
Flauta e violão na trova da rua
que é uma treva rolando da montanha
fazem das suas.
Não há garrucha que impeça:
A música viola o domícilio
e põe rosas no leito da donzela.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Serenata "
Boitempo
*
X
O cravo, a cravina, a violeta eram instrumentos de música
ou eram flores?
Na terra úmida filtrava-se
não sei que melodia de câmara
em múrmuro ostinato
e o jardim era uma sonata que não se sabia sonata.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Concerto "
Boitempo
*
XI
A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar cozinhar
rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.
A negra para tudo
nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito exclusivo)
morrer.
*
CARLOS DRUMMOMD DE ANDRADE
" Negra "
Boitempo II
*
XII
A solteirona e seu pé de begônia
a solteirona e seu gato cinzento
a solteirona e deu bolo de amêndoas
A solteirona e sua renda de bilro
a solteirona e seu jornal de modas
a solteirona e seu livro de missa
a solteirona e seu armário fechado
a solteirona e sua janela
a solteirona e seu olhar vazio
a solteirona e seus bandós grisalhos
a soteirona e seu bandolim
a solteirona e seu noivo-retrato
a solteirona e seu tempo infinito
a solteirona e seu travesseiro
ardente, molhado
de soluços.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Vida Vidinha "
Boitempo
*
XIII
O monumento negro do piano
domina a sala de visitas.
É maior do que ela, na imponência
lustrosa de sua massa.
Nele habitam cascatas encadeadas
à espera da manhã.
Tão bom que não falasse.
Mas fala, fala. A casa é caixa
de ressonância. Os pratos vibram.
O ar é som, o cão reage,
trava luta renhida com Czerny
e perde.
O pobre do silêncio refugia-se
no bico do canário.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Música "
Boitempo II
*
XIV
Strutt e Mancini, os dois maetros,
me levam para o outro lado da música.
O cisne de Saint-Saens é lírico no lago
do violino
Grieg ressoa em primavera.
Manon
Massenet
minueto
mais a sonata de Corelli, a Berceuse de Weber . . .
e já bebados
de celeste piano e de sublimes cordas,
ouvimos, cochilando,
o Noturno de Chopin e o Noturno de Strutt
pela mesma orquestra, sob a mesma
chuva estrelada de palmas das famílias presentes.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Orquestra "
Boitempo III
*
XV
Foi o foxtrote que acordou
os peixinhos do lago, na sala de espera,
ou foram eles, os minúsculos, insones peixinhos,
que fizeram acordar Sweet Georgia Brown
entre Body and Soul, para o Tea for Two,
enquanto não se abrem, rascantes, as portas da segunda sessão?
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Orquestra "
Boitempo III
*
XVI
O beijo é flor
no canteiro
ou desejo na boca?
Tanto beijo nascendo
e colhido
na calma do jardim
nenhum beijo beijado
(como beijar o beijo?)
na boca das meninas
e é lá que eles estão
suspensos
invisíveis.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Beijo-Flor"
Boitempo II
*
XVII
Aos que me dão lugar no bonde
e que conheço não sei donde,
-
aos que me dizem terno adeus,
sem que lhes saiba os nomes seus,
-
aos que chamam deputado
quando nem mesmo sou jurado,
-
aos que, de bons, se babam: mestre!
inda se escrevo o que não preste,
-
aos que me julgam primo-irmão
do rei da fava ou do Hindustão,
-
aos que me pensam milionário
se pego aumento de salário
-
- e aos que me negam cumprimento
sem o mais mínimo argumento,
-
aos que não sabem que eu existo,
até mesmo quando os assisto,
-
aos que me trancam sua cara
de carinho alérgica e avara,
-
aos que me tacham de ultrabeócia
a pretensão de vir da Escócia,
-
aos que vomitam(sic) meus poemas,
nos mais simples vendo problemas,
-
aos que, sabendo-me mais pobre,
me negariam pano ou cobre
-
- eu agradeço humildemente
gestos assim vário e divergente,
-
graças ao qual, em dois minutos,
tal como o fumo dos charutos,
-
já subo aos céus, já volvo ao chão,
pois tudo e nada nada são.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Obrigado "
Viola de Bolso



*
XVIII
Bota parafuso no bico do pião.
Bota prego limado, bota tudo
para rechar o pião competidor.
Roda, pião!
Racha, pião!
-
Se você não pode rachar este colégio
nem o mundo nem a vida,
racha pelo menos o pião!
(Mas eu não sei, nunca aprendi
rachar pião. Imobilizo-me).
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Campeonato de Pião "
Boitempo III
*
XIX
A fábrica de café de João Acaiaba
a fábrica de sabão de Custódio Ribeiro
a fábrica de vinho de João Castilho
a fábrica de meias de François Boissou
a fábrica de chapéus de Monsenhor Felicíssimo
a fábrica de tecidos de Doutor Guerra
a fábrica de ferro do Jirau do Capitão Aires
a fábrica de sonho de cada morador
a fábrica de nãos do governador longíquo
a fábrica de quê? na intérmina conversa
que rumina o milagre
e cospe de esquerda
no chão.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Tantas Fábricas "
Boitempo III
*
XX
O vinho à mesa, liturgia.
-
©P Quinta na região do Porto, Portugal
*
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-
Respeito silencioso
paira sobre a toalha.
A garrafa espera o gesto,
o saca-rolha espera o gesto,
a família espera o gesto
que há de ser lento e ritual.
-
Ergue-se o pai, grão-sacerdote,
prende a garrafa entre os joelhos
gira regira a espira metálica
até o coração do gargalo.
Não faz esforço,
não enviesa,
não rompe a rolha.
É grave, simples,
de velha norma.
-
Nítido espoca
o ar libertado.
O vinho escorre
sereno, distribuindo-se
em porções convenientes:
copo cheio, os grandes;
a gente, dois dedos.
-
Bebe o pai primeiro.
Assume a responsabilidade
sacra.
já podemos todos
saber que o vinho é bom
e piamente degustá-lo.
-
Mas quem diz que bebo solene?
Meu pensamento é o saca-rolha,
o sonho de abrir garrafa
como ele - só ele - abre.
-
A roxa mácula no linho,
pecado capital.
Esse menino
não aprende nunca a beber vinho?
(Quero é aprender a abrir o vinho
e nem mesmo posso aspirar
ao direito de abrir o vinho
que incumbe ao pai e a mais ninguém
essa nossa antiga religião.)
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" O Vinho "
Boitempo III
*
XXI
O melhor na caixa de vinho
não é o vinho constelado de medalhas.
É o brinde oculto, destinado a quem? A mim,
caixeiro de armazém de secos e molhados.
-
A martelo e formão desventra-se o caixote.
Nas botelhas deitadas dorme vago torpor.
Papel de seda branco envolve esse letargo.
Onde o brinde?
O canivete, a tesourinha,
a peça portuguesa de cerâmica, onde , onde
comigo brinca de esconder?
-
E se acaso esqueceram lá no Porto
de colocar meu brinde aí dentro?
Se em alto-mar - ó caixa balançando
entre ondas atlânticas iradas -
um marinheiro a violou,
roubou meu brinde lusitano?
-
O patrão acompanha os gestos de pesquisa:
- Olhe lá, não vá quebrar uma garrafa.
Me dará o que for? Guardará para um filho?
-
Vou lhe pedir? Surripiar
quando um freguês o chame, num segundo?
Melhor talvez do que pedir
e sofrer um não.
-
Ele volta, pergunta
vendo a caixa vazia, as mãos vazias:
- Com é?
O que foi que encontrou?
As mãos vazias lhe respondem: Nada.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"História do Vinho do Porto "
Boitempo III
Quinta, na região do Porto, Portugal.©P

*
XXII
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
-
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil
E os meios perfis não coincidiam.
-
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
-
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"A Verdade Dividida"
Contos Plausíveis
*
XXIII
A maior! A maior!
Qual, enfim, a maior
favela brasileira?
A Rocinha carioca?
Alagados, baiana?
Um analista indaga:
Em área construída
(se construção se chama
o sopro sobre a terra
movediça, volúvel,
ou sobre água viscosa?)
A maior, em viventes,
bichos, homens, mulheres?
Ou maior em oferta
de mão-de-obra fácil?
Maior em aparelhos
de rádio e de tevê?
Maior em esperança
ou maior em descrença?
A maior em paciência,
a maior em canção
rainha das favelas,
imperatriz-penúria?
tantos itens . . . o júri
declara-se perplexo
e resolve esquivar-se
a qualquer veredicto,
pois que somente Deus
(ou melhor, o Diabo)
é capaz de saber
das mores, a maior.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"Favela"
Corpo
*
XXIV
O Jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava
manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O Girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.
Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol
chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra,
na ocasião devida.
O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado
diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.
Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque
não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era
o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. "Você o tratava mal, agora está arrependido?". "Não, respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava."
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
"Maneira de Amar"
Contos Plausíveis

XXV
Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.
-
Está morto, que importa? Inda madruga
e seu rosto, nem triste nem risonho,
é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga
suor algum, na calma de meu sonho.
-
Ó meu pai arquiteto e fazendeiro!
Faz as casas de silêncio, e suas roças
de cinza estão maduras, orvalhadas
-
por um rio que corre o tempo inteiro,
e corre além do tempo, enquanto as nossas
murcham num sopro fontes represadas.
*
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
" Encontro"
Claro Enigma


▬▬
POEMAS A DRUMMOND
*
José Afonso

Velho DRUMMOND se te tivera
Junto de mim a esta hora
em que o silêncio é uma ordem
e a solidão longa espera
Tu me prestaras teu verbo
ou tua mão estendida
cheia dessa humanidade
que alguma vez pressentira
se alguma vez a entendera
como agora
-
Lembra-te DRUMMOND amigo
num território macabro
É como levares contigo
Um filho desnaturado.
*
JOSÉ AFONSO
"A Drummond De Andrade"
(Mais Poemas . . . "Os Eternos Momentos de Poetas e
Pensadores da Língua Portuguesa", pág. 096).
▬▬▬
Santiago Dias
*
O poeta
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Viveu como um pássaro
E morreu pássaro
-
Cantou
E encantou
Com seu canto
Poeta rolando
Pela vida.
*
SANTIAGO DIAS
"Flor do Tempo"
(Mais Poemas. . . "Os Eternos Momentos de Poetas e
Pensadores da Língua Portuguesa" pág. 099).
▬▬
Wilson Rocha
Máquina do mundo de Camões, mundo moderno de Cesário Verde,
mundo revirado de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE,
poeta do agora, poeta do insólito
Cantor da presença alucinatória da realidade,
teu sortilégio é mágico e tua solidão é coletiva.
Cantor de um mundo instável que morre hora a hora,
como nós morremos. Mundo em desordem, mundo absurdo.
Mundo de coisas destruídas, insubstituídas, esquecidas,
apagadas numa atmosfera espessa que dissolve os homens.
Mundo que é um além de nós e esse além conspira em nós,
nas horas irregulares e frias da paisagem industrial, essa
nova natureza do homem, ser fossilizado, sem finalidade,
que escuta sem entender uma voz de outrora,
uma voz homérica indagando: "e agora. você?"
Nesse mundo estrangulado o absurdo do presente
confunde-se com as visões do passado.
As brumas de Minas fundiram as manhãs antigas e os sonhos
confundindo a tristeza de Itabira e a ironia do século.
Reminiscências coloniais invadem a visão do presente,
a escultura do Aleijadinho confronta-se com a arquitetura de Niwmeyer.
Os bondes passam e passam antigas procissões
em demanda das Igrejas de Minas. Há o presépio e o Jazz,
o anjo dialético e os cartazes de cinema, o sorveteiro,
os carregadores de piano e as namoradas mineiras.
Minas é uma negra, áspera vulva abrindo-se na senzala,
parindo a grandeza da tragédia, Minas é o país do Cristo morto,
do Aleijadinho crucificado, do Tiradentes esquartejado.
Cantor da pedra no meio do caminho, das mãos dadas
dos ingleses que compraram as minas,
dos prefeitos que cortaram as árvores
e dos pássaros que foram banidos.
Grande e humano poeta, a tua ausência de lirismo
é carregada de paixão e drama e sentido totalizador.
Tua arte poética é uma mise en musique deste mundo vazio,
de ângulos, sequências, siglas, fragmentos
e robês à espera do relâmpago nuclear,
triste música deste reino de solidão.
*
WILSON ROCHA
"Pequena ode aos oitenta anos de
Carlos Drummond de Andrade,
o grande poeta do mundo revirado
".
(Mais Poemas . . ."Os Eternos Momentos de Poetas
e Pensadores da Língua Portuguesa" pág. 094)

▬▬
Manuel Bandeira
-
Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent'anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
-
Prima em "Alguma Poesia",
Prima no "Brejo das Almas".
Prima na"Rosa do Povo",
No "Sentimento do Mundo".
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE).
-
Como é fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Inteiramente à vontade
O poeta diverso e múltiplo
Que é CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
-
Louvo o Padre, o Filho, o Espírito.
Santo, e após outra trindade
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Que é CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
*
MANUEL BANDEIRA
"Carlos Drummond de Andrade"
Estrela da Tarde
(Mais Poemas . . ."Os Eternos Momentos de Poetas e
Pensadores da Lingua Portuguesa", pág. 181).
▬▬▬
Abgar Renault
-
Amo-te o engenho subversivo e grave,
que levedou seu próprio pão de vida
e nele talha a forma apetecida:
tarde de chuva, Sol, sal, pouso de ave.
-
Amo-te o verbo extremo de suicida,
essa implícita música sem clave,
pélago no recôncavo da nave:
tua poesia isenta e acontecida.
-
Amo-te a destra, que nos ares lança,
de dentro da tua arca, a nua herança:
os teus conflitos de esplendor e bruma,
-
teus peixes, teus demônios, tua ordem,
▬ claros enigmas que no tempo acordem
teus cosmos e teu caos de pedra e espuma.
*
ABGAR RENAULT
"Soneto ao Poeta Carlos Drummond de Andrade"
A Outra Face da Lua
(Mais poemas . . ."Os Eternos Momentos de Poetas e
Pensadores da Língua Portuguesa" pág. 164)



Estátua 
 "Carlos Drummond de Andrade"
inaugurada 30/10/2002,
Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil.
Em 2012, vândalos, roubaram os óculos da estátua.


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