terça-feira, 14 de julho de 2009

050 - José Régio " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA "


JOSÉ RÉGIO
José Maria dos Reis Pereira
Nasceu em 17 de setembro de 1901, signo de virgem,
Vila Conde, Portugal.
Doutorou-se na Universidade de Coimbra, em
"Filosofia Românica". Começou a escrever em
Coimbra " Jogo da Cabra Cega", 1929.
Um dos principais fundadores da revista "Presença",
de Coimbra, 10 de março de 1927, faziam parte Gaspar Simões,
Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt,
Fausto-José, António de Navarro, Casais Monteiro,
Miguel Torga, terminou em 1940 . . .
Estilo Modernista.
*
CANTOePALAVRAS
Poemas de Deus e do Diabo, 1925; Biografia, 1929;


Jogo da Cabra-Cega, 1934 (romance); 
As Encruzilhadas
de Deus, 1936; Jacob e o Anjo, 1940; Fado, 1941;
O Príncipe com Orelhas de Burro, 1942; Mas Deus é Grande, 1945;
Histórias de Mulheres, 1946; Benilde ou a Virgem-Mãe, 1947;
El-Rei Sebastião, 1949; Três Peças em um Ato, 1957;
A Chaga do Lado, 1954; Filho do Homem, 1961;
Há mais Mundos, 1962; Ensaios de Interpretação
Crítica(ensaio), 1964; Três Ensaios sobre Arte (ensaio), 1967;
Cântico Suspenso, 1968 . . .
*
I
Tudo passou por mim.
tudo passou por mim, sim, - mas passou . . .
A semente caiu no meu jardim:
Um sopro a trouxe e a levou!
-
Quantas, oh, quantas vezes (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Tu, que por mim passaste a horas tantas,
Demorasre - e porquê? - o teu plhar no meu!
-
Tuas Pupilas cheias de alma tinham
Tal fome de compreensão,
Que, trêmulos, meus lábios e meus braços mal retinham
O grito da resposta: irmão . . . !
-
Mas nós passávamos. A vida, igual, banal, alheia,
Desenrolava-se entre aquele olhar . . .
Subia o pano. Ante a plateia,
Tu e eu só sabíamos falar.
-
Quantas, oh, quantas vezes (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Tu, que eu tive entre os braços, certa noite, a horas tantas,
Feriste o lábio súplice no meu!
-
Um arrepio mais de além me percorria;
E eu compreendia, pelo amor com que chorava,
Que, no teu corpo, alguém, alguma coisa, me pedia
Mais do que o vício triste que eu dava . . .
-
era um clarão! Giravam discos . . . Num instante,
Nada restava desse apelo de Absoluto.
E eu retomava o meu papel de amante
Sobre o teu corpo de anjo corrupto.
-
Quantas, oh, quantas vezes, (tantas, quantas
O sarcasmo dos deuses me escolheu)
Ao dobrar duma esquina, a horas tantas,
Nem sei quê - me enterneceu . . . !
-
E, de repente, como uma tontura,
O cárcere das coisas se me abria;
Pairava sobre mim o halo ou a sombra da Loucura,
E eu ouvia, e sentia, e via, e compreendia . . .
-
Uma janela escura, um muro desvastado,
Um potão velho, um tronco de árvore, um penedo,
- Tudo avançava para mim transfigurado,
Com faces tais que me faziam medo.
-
Mas meus olhos cegos espreitavam, e eu só via
Madeira podre ou pedra bruta - nada mais . . .
E sobre estes clarões a vida decorria,
Como um trapo safando uns taços geniais.
-
Sim, cai toda a semente em meu jardim.
O vento que a traz a leva . . .
Senhor, tem pena de mim!
- Deixa-me a tua LUZ ou a minha TREVA!
*
JOSÉ RÉGIO
" As Barreiras "
Poemas de Deus e do Diabo
*
II
Trombetas, anafis, clarins, timbales,
Também eu quis que o mundo mos ouvisse
Tocar; e essa banal, vã garridice
Feriu ecos por montes e por vales.
-
Não me fales!, não fales!, não me fales!,
Que tudo que digas, eu mo disse.
Nada mais foi que já só pó, velhice . . .
Deixa que enfim me cale e tu te cales.
-
Corri cafés, concertos, bares, orgias,
E habitei celas frias e sombrias
De solidão e de silêncio, em tudo.
-
Não me fales! adeus! . . . vai! tenho pressa . . .
Que o último diálogo começa
Com a noite de chumbo e de veludo.
*
JOSÉ RÉGIO
" Vésperas
Poemas de Deus e do Diabo
*
III
O que de todos esperara, há quanto
Que todos, um por um, mo sonegaram!
Meus lábios sem razão os verberaram,
Saiba-me a boca, embora, a amargo e a espanto.
-
Pois que lhes dava eu, pedindo tanto?
A mim próprio, que dei? Sons que esvoaçaram . . .
A vida não perdoa aos que a frustraram!
E a vida me atirou para o meu canto.
-
Já, como quem, para morrer, se estira
No limiar da casa abandonada,
E olhando os céus, inda sorri, respira,
-
A Ti levanto os olhos do meu nada . . .
Recebe Tu levanto os olhos do meu nada . . .
Minh'alma de nós todos recusada!
*
JOSÉ RÉGIO
" Estrela da Tarde "
Poemas de Deus e do Diabo
*
IV
Sob ortigas, heras,
Vem o teu cicio,
Fonte que puderas
Ser torrente, rio . . .
-
Nesse ninho oculto
Sonhas, cantas, choras,
- Cumpres teu destino - longe do tumulto
Do mundo que ignoras.
-
Da tua existência
Mal chega até nós,
E só pela sua tímida insistência,
Tua interminável, pequenina voz.
-
Como se, no esconso desse teu retiro,
Caindo, um cristal
Se partisse, e erguesse, contínuo, um suspiro
Musical . . .
-
Lá de longe em longe, porque se afastara,
Por alguns momentos, do tumulto fútil,
Passa alguém que pára, e, sem querer, repara
No teu canto inútil.
-
Logo após, regressa,
Novamente bebado, ao seu mundo, enquanto
Sempre recomeça
Teu choro ou teu canto.
-
Na sombra e no ermo. Sob ortigas, heras,
Lágrimas em fio.
Fonte que puderas
Ser torrente, rio . . .
*
JOSÉ RÉGIO
" Fonte "
Música Ligeira
*
V
Vinha alargando a noite . . .Eu continuava,
Já rouco, e aos berros sem decência alguma.
Ai boca estéril, tumultuosa, e escrava!
Cuspia fumo, pó, fel, sarro, espuma . . .
-
Minh'alma aflita ouvia-me, e aguardava,
Pesando-me as palavras uma a uma:
Mas, entre tantos sons, só não ressoava
A Palavra essencial que me perfuma!
-
Quem me julgou - julgou-me, pois, por tudo
Menos por essa Nota inexprimida
Sem a qual nem repondo aos que me chamem . . .
-
E eu fiquei só, desconhecido, mudo,
Pairando, estranho à minha própria vida,
Per omnia secula seculorum. . ., amen.
*
JOSÉ RÉGIO
" Meditação da Noite "
Poemas de Deus e do Diabo
*
VI
A névoa foi crescendo instante a instante.
Já não há mar, nem céu,
No seu ondeante
Véu.
-
O próprio areal deseto
se vai indefinindo,
Ficando longe e perto,
Infindo.
-
Diluídas nessas mãos estranhas
Que se diria nem as roçam,
Para os lados da terra, as curvas das montanhas
Mal se esboçam.
-
Como numa aguarela
Aérea,
Tudo, em redor, perde os contornos, - vela
De espírito a matéria.
-
Não venhas, Sol, denunciador agreste,
Com teu brutal clarão jucundo,
Desmentir este
Delicioso fim do mundo!
*
JOSÉ RÉGIO
" Manhão de Névoa "
Música Ligeira
*
VII
No jardim deserto
Já Novembro perto,
Desfolhei as rosas últimas a dar.
Jóias maltratadas,
Rosas desfolhadas!
Só o seu perfume vai ficar no ar.
-
Recolhi os versos
- Breves universos -
Que atirara ao vento para os espalhar.
queimei-os, rasguei-os.
Secaram-me os seios . . .
Só rimas e ritmos vão ficar no ar.
-
Saudades, lembranças
De vãs esperanças,
Fiz covais no peito para as enterrar.
Nada mais me importa.
Fechem essa porta!
Só um pó doirado vai ficar no ar.
*
JOSÉ RÉGIO
" Canção de Outono "
Música Ligeira
*
VIII
Primeiro, foi aquele olho
Do candeeiro
Como um topázio num molho
De nevoeiro.
-
Logo afogado,
Seu amarelo-verde
Sobre, mais baixo, um telhado
Quase se perde.
-
E um fio escorre,
Para a parede que inclina,
De luz que, dúbia, morre
À esquina.
-
Então, no muro,
Aquel'outro olho da janela
Pasma, esgazeado, sobre o escuro
De dentro dela.
-
Outras paredes, outras casas,
Dum lado e doutro da calçada,
Mudas, na sombra, como brasas
Duma lareira regelada.
-
O chão, subindo
Não pode ver-se para onde,
No fundo, além, se vai sumindo
Como uma cobra que se esconde.
-
Por trás de aqueles muros, dormem
Homens, mulheres,
Que talvez formem
Lares seres.
-
De olhos fechados. E se alguns
Velam, atentos,
É aos zunzuns
De, no silêncio, nenhuns ventos.
-
Outros, que estão doentes, lassos,
Respiram miasmas,
Febris, a braços
Com seus fantasmas.
-
Na escuridão,
Seus olhos côncavos de fome
Comem a noite, a solidão,
E a solidão, a noite, os come.
-
Assim se cumpre o Sono vário.
Fora, acordando as lajes frias,
Passa um poeta solitário;
E, como nas oleografias,
-
Ele é quem vê, por um instante,
Sobre isso tudo abrir-se, dentro
Do triângulo irradiante,
O Olho-Centro.
*
JOSÉ RÉGIO
" Olhos no Beco "
Cântico Suspenso
*
IX
Jardim do poeta.
Claustro de monge.
Cela murada exposta aos céus e ao longe.
Câmara aberta mas secreta.
-
Poucos metros quadrados,
Mais vastos do que o mar.
Sol, chuva, lua, vento, - e o musgo a atapetar
Três ou quatro carreiros mal traçados.
-
Como jóias voláteis, palpitantes
Mensageiros do amor,
As borboletas vão de flor em flor,
Levando o pólen às amantes.
-
A camélia, o junquilho, a humílima violeta
Cujo perfume vem do chão,
Rociados da aurora, o saudarão:
" Bom dia Poeta "
-
Bom dia! Deus seja louvado,
Porque tudo, por Ele, é extaordinário!
Cada corolazinha é um seu sacrário.
Jardim do poeta, - chão sagrado.
-
Louvado Quem na mais modesta flor
Pôs tal requinte, e a fez tão rica,
Tais mistérios e dons lhe comunica,
Lhe dá caprichos tais de forma e cor!
-
Jardim do poeta. Rosas finas,
Cravos de sangue azul vestidos de brocados,
São vizinhos dos lírios dos valados,
Acamaradam com bononas.
-
Câmara aberta mas secreta,
Jardim do poeta. Ao entardecer,
Vai ele, a cada flor, dar de beber.
E todas: " Boa tarde, Poeta !"
-
Por ali se demora. Fora. longe
Fervem pauis, vulcões de lama,
E a ele próprio, o mal o chama.
Jardim do poeta, ali. Claustro de monge.
-
Ali se dão entendimentos
Que entre os homens não chegam a se dar.
Espera um pouco, noite! E, devagar,
A noite vem, com gestos sonolentos.
-
Começa um rouxinol seu desfiar de pérolas.
Regada há pouco, a terra cheira bem.
Noutro jardim maior, por i além,
Abrem-se as rosas das planícies cérulas.
-
Câmara aberta mas secreta,
Jardim do poeta. Regressando,
Sobe um murmúrio no ar brando,
Que o segue: " Boa noite, Poeta! "
-
" Boa noite, e bons sonhos! Dorme bem.
Cá te esperamos amanhã. "
Como toda a riqueza é pobre e vâ,
Se a alma não a tem!
-
Jardim do poeta.
Claustro do monge.
Cela murada exposta aos céus e ao longe.
Câmara aberta mas secreta.
*
JOSÉ RÉGIO
" Jardim do Poeta "
Colheita da Tarde
*
X
*
"Vem por aqui" ▬ dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali . . .
-
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
▬ Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
-
Não , não vou por ai! Sou vou por onde
Me levam meus próprios passos . . .
-
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "Vem por aqui?"
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí . . .
-
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
-
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos? . . .
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vos amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a miragem,
Amo os abismos, as tormentas, os desrtos . . .
-
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos e sábios.
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios . . .
-
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
-
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga "Vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou . . .
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
▬Sei que não vou por ai!
*
JOSÉ RÉGIO
"Cântico Negro"
Poemas de Deus e o Diabo
*
XI
Para além dos pinhais, - vales e montes.
Mais montes para além, mais vales, mais pinhais.
Para além destes outros, céus e nuvens, horizontes . . .
E para além . . . ., que mais?
-
E montes, horizontes, céus, pinhais, nuvens e vales,
Mudos respondem: " Para além,
Pergunta-o a ti mesmo quando, olhando-nos, te cales:
A tu'alma é que sabe o que em si tem ".
*
JOSÉ RÉGIO
" Para além dos Pinhais "
Colheita da tarde
*
XII
Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando Deus quiser.
-
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à maus rara;
Outras, tão pouco,
que ninguém mais com tal se conformara.
-
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar...
e venha a morte quando Deus quiser.
-
Mas, com isto, que tem as estrelas?
continuam brilhando, altas e belas.
*
JOSÉ RÉGIO
"Sabedoria"
A chaga do Lado
*
XIII
dentro de mim eu me quis ver. Tremia,
dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
-
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fonte a suar melancolia!
-
Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu desejo os sulca de vermelho:
-
que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!
*
JOSÉ RÉGIO
"Narciso"
Sonetos
*
( Mais Poemas . . . "Negras Capas . . . Poetas de Coimbra", 195 ;
"Donde Borbota, minha Saudade", pág. 193).

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