quarta-feira, 11 de março de 2009

168 - Plínio Marcos " OS ETERNOS MOMENTOS DE POETAS E PENSADORES DA LINGUA PORTUGUESA"


"Orquideas" Meu Jardim, foto LuisD.
»1175«
PLÍNIO MARCOS
Plínio Marcos de Barros
Nasceu a 29 de setembro de 1935, signo de libra,
Santos, Estado de São Paulo, Brasil.
dramaturgo brasileiro, participou em vários grupos
de teatro(decada de 1960), jornalista(decada de 1980).
Teve problemas com a censura da época, como
"Navalha na Carne"(teatro) . . .
Faleceu 19 de novembro de 1999.
Homenagens: Prémio "Moliére" e "Mamembe", 1985;
Prémio "Shell", 1993; "Cidadão Émerito" da Câmara
Municipal de Santos, Brasil, 1998. . .
*
CANTOePALAVRAS
Navalha na Carne, 1968; Quando as Máquinas Param
(teatro), 1971; Histórias das Quebradas do Mandaréu
(conto), 1973; Dois Perdidos numa Noite Suja(teatro), 1978;
Novas Histórias da Barra do Catimbó(conto);
Madame Blavastsky(teatro), 1985; Ns Triha dos
Saltimbancos(conto); O Troque dos Espelhos(conto); 1999 . . .
*
E vão os homens gastos, as mulheres gastas, as crinças gastas
da aldeia do desconsolo se desgatarem
ainda mais na capina da seara de um só dono,
vão embrulhados na desesperança e em
encardidos trapos que lhes servem de manta,
vão embrulhados em encardidos trapos e carregando
um alforge de pouca e fria comida,
vão deixando a aldeia do desconsolo,
rumo aos campos desconsolados do único emprego para as mãos
carentes de sabedoria em toda a região da aldeia do desconsolo.
*
PLÍNIO MARCOS
(trecho "Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos).
»1176«
MÁRIO FAUSTINO
Mário Faustino dos Santos e Silva
Nasceu a 22 de outubro de 1930, signo de libra
em Teresina, Estado de Piauí, Brasil.
Foi bolsista em "Pomona College", em Covina,
Estado da Califórnia, E.U.A., de Literatura da
Lingua Inglesa. E foi jornalista. . .
*
CANTOePALAVRAS
O Homem e sua Hora, 1955
Poesias de Mário Faustino, 1966 . . .
*
I
Apago a vela, enfuno as velas planto.
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto.
-
E ardente em festas fogo embalsamadas
Amo em tropel,corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente.
-
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalos e símbolos, harmônio
Onde executo a flor que em mim se embebe.
-
Centro e cetro, curvando-se ante a sede
Divina - a própria morte hoje defloro
A vida eterna engeldro: Gero, adoro.
*
MÁRIO FAUSTINO
" Viagem "
*
II
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do Sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silencio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se entendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.
-
Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
-
Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia -
E mudo sou para contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
*
MÁRIO FAUSTINO
" Legenda "
O Homem e sua Hora
»1177«
LUIS VEIGA LEITÃO
Luis Maria Leitão
Nasceu 27 maio de 1912, signo de gemeos,
em Moimenta da Beira, Portugal.
Escritor artista plástico, participou em várias
revistas como "Seara". . .
Faleceu a 09 de outubro de 1987.
Estilo Neo-realismo
*
CANTOePALAVRAS
Latitude, 1950; Noite de Pedra, 1955;
Noite de Pedra, 1959;
Livro de Andar e Ver, 1976; Linhas do Trópico, 1977;
Rosto por Dentro, 1992; Livro da Paixão- para
Ler e Contar, 1986 . . .
*
I
Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste
-
Aqui
onde o dia mal nascido
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido . . .
-
Bem haja a mão que te criou!
olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
" Uma Bicicleta Desenhada na Cela "
*
II
Noite de pedra
-
Cerração de muros
Arames farpados
Grades de ferro
Cruzes de ferro
Nas campas rasas
Duma luz morta
-
E a lua os cornos da lua
Uma baioneta calada.
-
Noite de pedra noite forjada
para que o silêncio esmague
O coração dos homens.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
" Noite de Pedra "
*
III
Lá, na última das celas
nódoa negra de açoites,
não há dias, não há noites
porque as noites têm estrelas.
-
Lá, só há sombra que dói.
Sombra e brancura dum osso
que o preso remói, remói
no fundo do seu poço.
-
Lá, quando o vierem buscar
amanhã, depois ou logo,
terá na lama mais um fogo,
mais chama no olhar.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
"Segredo"
Ciclo de Pedras
*
IV
Do rosto da luz e do ocre
o ouro nasce das paredes
sem grito
sem sombra
sem febre
apenas habitando o dia
de rua breve
-
Aqui, amor, uma palavra tua
palavra de água
pluma dum sopro
limo de segredos
raiz dum gesto
vê-los-ia em torno dos sentidos
como anel nos dedos.
-
Aqui, amigos, a palavra lima
limando o desejo nos dentes
(liberdade amor viagem)
nitidamente encontraria
profunda moldagem
acerada grafia.
-
Aqui
indústria das formas respiradas
( o vento na íris da asa dum besouro)
porque o silêncio é fábrica
 e o ar é de ouro.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
"Do Livro de Andar e Ver"
»1178«
MÁRCIO SAMPAIO
Nasceu em 1941, Santa Maria de Itabira,
Estado de Minas Gerais, Brasil.
Um dos fundadores do "Grupo Ptyx", de Literatura e
Arte, 1963 . . .
Homenagens: Prémio "Cidade de Belo Horizonte", 1963,
1971 e 1974; Prémio "Cláudio Manuel da Costa", 1964
e 1965; Prémio "Concurso Nacional de Poesia Falada",
1974, Varginha, Minas Gerais, Brasil . . .
*
CANTOePALAVRAS
13º. Signo, 1963; Rubro Apocalíptico, 1964;
O Ciclo de Barro, 1965; O Tempo em Minas,1974;
Paisagem Mineira(ensaio), 1977; A Paisagem nossa de
cada Dia(ensaio), 1998; Risco de Vida, 2000 . . .
*
1. Allegro
Entre Mozart e a mosca
um guarda-chuva, nuvem imprecisa.
Entre a brisa e o Sol
um caracol, móvel montanha.
Dentro de Minas a moça
costurando a história:
- o tecido esgarçado
remenda-se logo
na luz provisória.
2. Andante
Entre a náusea e a várzea
um vagalume, olho indeciso.
Entre a missa e o salto
duro respaldo, muda barganha.
Entrementes, a moça
espia a ruína:
- o olho de louça
transfunde a noite
em doce açoite.
3. Rondó
Entre choques de volques
um agro nome, travo impreciso.
Entre o colt e o alvo
um corpo ágil o ar assanha.
Entre risos finos, a moça
afixa o aviso:
- Entre os saldos
fabricam-se sonhos
com sangues e guizos.
(APLAUSOS)
É a noite entrando
no ouvido, quando:
tudo se funde
(musgo e moça)
no zzz da mosca.
*
MÁRCIO SAMPAIO
"Sonata"
Antologia
»1179«
HÉLIO LOPES
Nasceu a 19 de dezembro de 1919, signo de sagitário,
Eugenóplis, Estado de Minas Gerais, Brasil.
Professor em diversas Universidade do Brasil, poeta
participou em várias revistas . . .
Homenagens: Prémio "Erico Verissimo", da Associação
Brasileira de Letras" A.B.L..
Faleceu em 1992.
*
CANTOePALAVRAS
Invulnerável Pássaro, 1974; Divisão das Águas, 1979;
Água Emendada, 1981; Introdução ao Poema Vila Rica, 1985;
Cantigas do Meu Bairro, 1987; Terraços da Abite;
Cântico dos Cânticos . . .
*
I
No incêndio das estrelas
consumi os olhos.
Tateio no chão das ventanias
o passo do anjo.
-
entre as minhas mãos,
a tua face -
rosa dos ventos -
e sentirei glícinias e agapantos,
noturnas claridades.
-
Quem me carregará para a outra margem
senão o teu amor?
-
As palmeiras repousaram a amanhã
Aliocha*
No asfalto resvalam salamandras
com olhos de bistre.
-
Nos lábios o sonho
nas mãos o espelho.
*
( Aliocha* personagem que, no romance
de "Dostoiesvski", escritor Russo, exprime o anseio
pela santidade).
*
HÉLIO LOPES
"XIX"
Invulnerável Pássaro
*
II
Pastor, a Flauta
acordei saudade nos pássaros.
Será da alvorada
o segredo acendendo na prata
cintilações de azul?
-
A Rosa
beija o silêncio da noite
e arranca das estrelas,
o orvalho do verão
nas águas do rio
a árvore jogou
a ponte de sombra.
*
HÉLIO LOPES
"V"
Invulnerável Pássaro
»1180«
NELSON ASCHER
Nasceu em 1958, cidade de São Paulo, Brasil
Jornalista, Poeta . . .
*
CANTOePALAVRAS
Ponta da Língua, 1983; Sonho da Razão, 1993;
Algo de Sol, 1996; Parte Alguma, 2005 . . .
*
Tomado que eu estava pelo
trabalho a contragosto,
não sei se me causava mais
prazer ou mais desgosto
o raio que arranhava, arisco
que nem gato, o meu rosto.
-
Obsesso que eu estava em meio
do que fora proposto,
não sei o que me parecia
- mais anjo ou mais encosto -
o raio com que se irritava
alérgico o meu rosto.
-
Imerso que eu estava menos
no breu que num aposto,
não sei se vinha da manhã
ou viera do Sol posto
o raio - inseto que picava
com seu ferrão meu rosto.
*
NELSON ASCHER
"Manhã"
Algo do Sol
»1181«
SILVIANO SANTIAGO
Nasceu a 29 de setembro de 1936, signo de libra,
Formiga, Estado de Minas Gerais, Brasil.
Poeta, contista, ensaísta, romancista . . .
*
CANTOePALAVRAS
O Banquete, 1970; Salto, 1970; O Olhar, 1974;
Em Liberdade, 1982; Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina, 1988; O Cheiro
Forte, 1993; Heranças, 2008 . . .
*
I
Não podendo xingar
O patrão que o rouba,
O operário xinga os juízes da partida
E procura espancá-los,
Como se o bandeirinha mais próximo
Fosse o procurador da prepotência . . .
Oswaldo de Andrade 1943.
*
SILVIANO SANTIAGO
"Futebol"
Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina
*
II
Falam alto e ninguém escuta.
Põem-se a gritar
E todos tapam os ouvidos
-
De repente - é 1945 -
Tudo é permitido
E começar a falar baixo e confuso.
-
Abraçar os limites do grito
-escreveu Paul Eluard.
*
SILVIANO SANTIAGO
"Liberdade"
Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina
*
III
Todas têm os gestos
Estereotipados e sentimentais
De maternidade vicária:
A tia, a madrinha, a vizinha,
A irmã mais velha, a babá
A madrasta. etc.
-
A criança apenas pergunta:
O que é mãe:
O que é amor?
*
SILVIANO SANTIAGO
"Palavras Abstratas"
Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina
»1182«
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA

Nasceu a 27 de março de 1937, signo de áries.
Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil.
Doutorou-se na Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1969. Poeta, jornalista e
Professor, viajou por vários países leionando.
Encontro de Poetas de Língua Latina, 1987, México;
Festival Gerald Hopkins, 1996, Irlanda; Centenário
de Neruda, 2004, Chile; Festival Internacional de Poesia
pela Paz, 2005, Coreia . . .
Homenagens: Prémio "Mário de de Andrade" Instituto
Nacional do Livro; Prémio Pen-Club; Prémio União Brasileira
de Escritores; Prémio "Estado de Guanaba" . . .
*
CANTOePALAVRAS
O Desemprego da Poesia, 1962; Canto e Palavra, 1965;
Poesia sobre Poesia, 1975; A Grande Fala do Índio, 1978;
Que País é Este?, 1984; Catedral de Colônia e Outros Poemas, 1985 . . .
*
I
aquele espanto
que eu, moreno brasileiro,
conheça não apenas os Concertos de Branderburgo,
mas na adolescência, além de Mozart
cantasse Josquin du Pès, De Lassus, Jannechin, Scarlatti e os renascentista ingleses.
-
Só agora entendo por que
tanta música nas bíblias de minha infância:
- é que o demônio é ambíguo
e pode estar no corrosivo silêncio
e no insidioso ruído.
-
todas as manhãs
toco um concerto de flauta e clarineta para minhas plantas.
Elas já sabem, e esperam
- o seu café da manhã.
-
Minha mulher, melhor que eu,
com a alma aberta na varanda
sabe conversá-las, sabe tangê-las,
tricar-lhes a fraldas e o alpiste
com seus olhos em ciranda.
-
Não é de hoje
que a música cura e ensandece os reis.
Então, não foi assim que Ulisses se curou
dos dentes do javali? Não era assim
que apaziguavam a fúria de Saul
a harpa e o canto do pastor David?
-
Tal a consabida
estética medicinal
ou homeopatia musical
romântica:
Violinos para hipocondríacos,
contrabaixo para os nervosos,
a histeria é com a harpa,
a flauta refaz pulmões,
trombone contra a surdez,
orgão para irascíveis,
a trompa aos perseguidos,
e como tônico geral
meu instrumento de fé
- o oboé.
-
- Ocorreria sangue nos becos
se à noite tocassem Mozart
e o fagote dos barrocos?
-
- Já se usou um adágio de Corelli
para estancar no ar
o punho torturador?
-
- Quem jamais matou alguém
numa sala de concertos,
embora a ópera tenha
assassinos no libreto?
-
Soassem o oboé e orquestra de Marcello
na mesa do conselho e as tensões
se esvairiam e perdões se abraçariam,
e até flores, do acrílico ambiente, brotariam
soando a escala dos serenos violinos.
-
Ah, pureza alucinante do cego Rodrigo
- gentil-homem - dedilhando a escuridão
enquanto o Concerto de Aranjuez
me esfacela o coração.
-
A música expulsa da alma o câncer,
-
apazigua o mal patrão,
melhora o operário,
faz crescer as colheitas
e apascenta a criação.
-
Os que vão se amar um dia, já estão ouvindo acordes
a mesma ária de Bach.
-
Os que geram filhos, nomes, obras,
crescem com este adágio de Albinoni.
-
E até mesmo um povo escravo se livraria
se a Nona de Beethoven
lhes sasse todo dia
a ensinar que é em coro
que se constrói a alegria.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"Iniciação Musical"
Que País é Este?
(nomes de compositores, e obras, em destaque foram
feitos por mim).
*
II
Dizem os antigos:
- é preciso sonhar
para que o real se realize.
Então, desesperado, sonho industrial
nos fornos altos do dia, e à noite
sou o tecelão sózinho fiando um sonho novo.
-
sonhar é ciência que requer estudo. Escolar
releio o mundo e sonho com a história e o povo.
- Há um inquilinato dos sonhos? Desconfio,
pois há quem se instale no sonho alheio,
e aí reside até que venha o despejo ou desmonte.
-
- Há uma engenharia dos sonhos? Suponho,
porque há quem levante os escombros
do sonho alheio e o habite.
-
- Sonhamos alto? Sonhamos pouco?
Exercitamos o inconsciente dos gregos
numa olimpíada de loucos?
- É o sonho um palco improvisado
com cenário e atores convidados?
- Ou um afresco descascado urgindo restauração
num convento de desejos recalcados?
-
É o sonho um trompe-l' oeil, onde
quem está fora está dentro e quem está dentro
está por fora confuso e louco?
-
Como proteger o sonho em caixa-forte
contra gazuas e assaltos, e como evitar que nas ruas
escape do tiro e morte?
-
aprendeamos com os antigos muçulmanos,
essa raça acostumada a cavalgar no pêlo das miragens
plantando oásis no seco céu da boca dos camelos:
-
- quando o Sol do dia se transfoema em flor de fogo,
se deitam em alucinados tapetes na aragem
e vão abrindo seus desejos sob o feltro das tendas
e sombreando o seu deserto de imagens.
-
Na hora do combate, como sonhavam os generais antigos!
Um deles sonhou tão forte, que num sonho fez o exército
atravessar o rio
- e surpreender o inimigo adormecido.
Sabiam que uma guerra não se ganha só com lanças e gritos
- mas com sonhos ativos. Em tendas opostas
punham-se a sonhar, de monte a monte,
num tropel de imagens desesperadas
até que a madrugada jorrasse seus clarins
nas cores da alvorada.
-
Os muçulmanos antigos sonhavam
e destituíam políticos. Sonhavam
e libertavam os amigos. Sonhavam
e pagavam dívidas. E houve uma cidade
que de tanto sonhar inteira,
inteira, se libertou.
-
Então me indago do que sonhará meu povo,
se sonha pouco o meu povo,
se sonha,
o meu fraco povo.
-
Penso:
vai ver que sonhamos certo
e errada é a interpretação
Ou será que sonhamos sonhos
que não têm realização?
-
Déspotas!
Melhor não rir dos sonhos do poeta,
que um deles, estando preso
após compor uma epopéia sobre um exército de macacos,
foi libertado por sua armada imaginária
que convertendo o velho sonho num real novo
invadiu o reino e a torre
e o arrebatou
para o convívio simples de seu povo.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"Arte de Sonhar"
Que País é Este?
*
III
Daqui a um cem número de anos (prevêem os centistas)
A Terra estará coberta de gelo, convertida em desolada Antártica.
Ainda não se sabe se o frio virá aos poucos, definhando, recolhendo
e espiando os homens em suas tocas
ou de súbito congelará a bicicleta e o menino
o engenheiro em seus esquadros
o guarda em suas esquinas
e todas as letras e livros e estantes acumuladas desde a idade dos Sumérios.
-
Todas as palavras hirtas
as tábuas da lei, O Livro dos Mortos, O Alcorão, O Finnegans Wake - tormento enfim fossilizado
num planeta gélido ex-correndo no vazio.
-
Fria a letra, frio, talvez, o sentido
desses textos e o sangue das batalhas de Homero
e os álgidos tratados de ironia de todos os sábios e Cervantes
petrificadas e transparentes as enciclopédias
e os poemas de Li-Po e os escritos em rocha viva dos fenícios
toda pedra, enfim, onde uma só letra houver
espesso gelo descerá sepultando um Sol longínquo.
-
E assim pousadas (eternamente) aguardaremos
quem sabe um arqueólogo ou um deus silencioso
que roçando as asa sobre essas geleiras de vana verba
absorto se indagará: où sont les jeux d'antam?
e sobre as neves d'aujourd'hui irá lendo les chimères et les sagesses et les eternelles
e cauteloso, como convém ao sábio, irá colhendo a estória do perdido paraíso
o cântico dos cânticos, o realizado apocalipse
e só compreenderá o estranho ser humano
quando desse livro depreender a mensagem:
onde se leu fogo, leia-se água
onde se escreveu tudo, leia-se nada.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"A Letra e o Tempo"
Poesia sobre Poesia
*
IV
AVE! GARRINCHA
Ave humana
lépida
discreta
pés de brisa
corpo dúbio
finta certa.
-
Garrincha é como a aragem
Garrincha é como o vento
Garrincha é como a brisa
-
que ora avança
na cancha
com graça
e elegância
e rebate
o arremesso
e remata
no peito
e rechaça
a ameaça
da caça
que o caça
e enfim a embaraça
no drible-trapaça
que a prostra no chão.
Pés de brisa
corpo dúbio finta certa.
-
Garrincha é a ave
certa de seu vôo
Garrincha é a seta
certa de seu alvo
Garrincha é o homem
certo de sua meta.
-
Tendo as pernas curvas
e uma candura esquiva
no teu silêncio puro
a tua alma asinha
sabe sofrer na neve
o frio da andorinha.
-
Garrincha
ave incontida
e mal retida
nas gaiolas
do gramado.
-
Com endiabrados
dribles e disparos
com diabices raras
sobre a cancha
-
avança
a dança
e pula
e aduba
e açula
a alma do infeliz
que o perseguiu:
parou
pisou
passou
voltou
driblou
chutou
- gol do Brasil!
-
Pés de brisa
corpo dúbio
finta certa
Garrincha doravante
é ave nacional.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"Poema para Garrincha"
A Palavra
»1183«
EDUARDO VALENTE SIMÕES
Nasceu em 1906, Cidade de São Paulo, Brasil . . .
*
CANTOePALAVRAS
Colcha de Retalhos, 1930; São Paulo Vos Saúda;
Fundo de Gaveta . . .
*
I
Nunca fui tão poeta como agora.
Por quê? Ora, porque! Estou amando.
A-man-do! E já se viu poeta que, quando
ama, não cante em verso oamor que mora
-
n'alma, que a incendeia e que a devora?
Ah! Tudo, tudo é uma voz cantando,
sussurrando, enleiando, enfeitiçando
sempre, de espaço a espaço, de hora em hora . . .
-
Inda há pouco escutei, por coincidência,
a voz de minha deusa. Então, ligeiro,
voltei-me para vê-la . . . Que alegria!
-
Mas durou pouco essa ilusão. A ausência
dela notei, e a rir de mim, brejeiro,
um raio alegre do Sol deste dia . . .
*
EDUARDO VALENTE SIMÕES
"dia de Sol"
Fundo de Gaveta
*
II
A minha voz em preces se desata
quando a Noite, viúva inconsolável,
descerra o negro véu tecido em prata
sobre a fronte serena, imperturbável.
-
Quando o Sol, meu irmão ditoso, à noite
se recolhe, em silencio me levanto
e, do vento abrigada ao rude açoite,
saio dentro da treva e canto, e canto . . .
-
E canto um cantochão dolente, irreal
e doce como a palidez de minha
face; e sei bem que nunca faço mal
em cantar pela noite além, sózinha.
-
Canto e ilumino a Terra à noite; canto
com a voz que Deus me deu; e mesmo a luz
que espalho furto-a eu, com grande espanto,
àquele que na treva me conduz.
-
Canto, e cantando vou servindo mal
a todos. Canto, e porque canto, vivo
triste, triste e sozinha . . . A luz irreal
que furtei, essa mesma é um bem esquivo
do qual infelizmente nada fica
sob os raios vivíssimos do Sol;
nem a intenção de quem se mortifica
em conservar as cores do arrebol . . .
*
EDUARDO VALENTE SIMÕES
"Canção da Lua"
Fundo de Gaveta
*
III
Poá. Um lugarejo de subúrbio.
Tudo simples, modesto, como a gente
modesta e simples que ali vive.
-
As casas térreas, sem andares, baixinhas.
O cinema inaugurado há pouco,
a estação da Central,
a igreja-nova sem reboco.
-
Em tudo a alma virgem da natureza:
os montes, as serras azuladas, transparentes,
a vegetação de um verde unânime,
num abraço afetuoso de proteção e carinho . . .
-
Anoitece.
O crescente é um berço de luar
que embala no céu as estrelas.
Lá dentro, no luar bondoso
que me acolheu,
um piano soluça
a "Sonata ao Luar" de Beethoven.
*
EDUARDO VALENTE SIMÕES
"Sonata ao Luar"
Fundo de Gaveta

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