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»1175«
PLÍNIO MARCOS
PLÍNIO MARCOS
Plínio Marcos de Barros
Nasceu a 29 de setembro de 1935, signo de libra,
Nasceu a 29 de setembro de 1935, signo de libra,
Santos, Estado de São Paulo, Brasil.
dramaturgo brasileiro, participou em vários grupos
de teatro(decada de 1960), jornalista(decada de 1980).
Teve problemas com a censura da época, como
"Navalha na Carne"(teatro) . . .
Faleceu 19 de novembro de 1999.
Homenagens: Prémio "Moliére" e "Mamembe", 1985;
Prémio "Shell", 1993; "Cidadão Émerito" da Câmara
Municipal de Santos, Brasil, 1998. . .
*
CANTOePALAVRAS
Navalha na Carne, 1968; Quando as Máquinas Param
(teatro), 1971; Histórias das Quebradas do Mandaréu
(conto), 1973; Dois Perdidos numa Noite Suja(teatro), 1978;
Novas Histórias da Barra do Catimbó(conto);
Madame Blavastsky(teatro), 1985; Ns Triha dos
Saltimbancos(conto); O Troque dos Espelhos(conto); 1999 . . .
*
E vão os homens gastos, as mulheres gastas, as crinças gastas
da aldeia do desconsolo se desgatarem
ainda mais na capina da seara de um só dono,
vão embrulhados na desesperança e em
encardidos trapos que lhes servem de manta,
vão embrulhados em encardidos trapos e carregando
um alforge de pouca e fria comida,
vão deixando a aldeia do desconsolo,
rumo aos campos desconsolados do único emprego para as mãos
carentes de sabedoria em toda a região da aldeia do desconsolo.
*
PLÍNIO MARCOS
(trecho "Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos).
*
E vão os homens gastos, as mulheres gastas, as crinças gastas
da aldeia do desconsolo se desgatarem
ainda mais na capina da seara de um só dono,
vão embrulhados na desesperança e em
encardidos trapos que lhes servem de manta,
vão embrulhados em encardidos trapos e carregando
um alforge de pouca e fria comida,
vão deixando a aldeia do desconsolo,
rumo aos campos desconsolados do único emprego para as mãos
carentes de sabedoria em toda a região da aldeia do desconsolo.
*
PLÍNIO MARCOS
(trecho "Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos).
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»1176«
MÁRIO FAUSTINO
Mário Faustino dos Santos e Silva
Nasceu a 22 de outubro de 1930, signo de libra
em Teresina, Estado de Piauí, Brasil.
Foi bolsista em "Pomona College", em Covina,
Estado da Califórnia, E.U.A., de Literatura da
Lingua Inglesa. E foi jornalista. . .
*
CANTOePALAVRAS
O Homem e sua Hora, 1955
Poesias de Mário Faustino, 1966 . . .
*
I
Apago a vela, enfuno as velas planto.
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto.
-
E ardente em festas fogo embalsamadas
Amo em tropel,corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente.
-
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalos e símbolos, harmônio
Onde executo a flor que em mim se embebe.
-
Centro e cetro, curvando-se ante a sede
Divina - a própria morte hoje defloro
A vida eterna engeldro: Gero, adoro.
*
MÁRIO FAUSTINO
" Viagem "
*
II
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do Sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silencio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se entendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.
-
Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
-
Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia -
E mudo sou para contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
*
MÁRIO FAUSTINO
" Legenda "
O Homem e sua Hora
▬▬
»1177«
LUIS VEIGA LEITÃO
Luis Maria Leitão
Nasceu 27 maio de 1912, signo de gemeos,
em Moimenta da Beira, Portugal.
Escritor artista plástico, participou em várias
revistas como "Seara". . .
Faleceu a 09 de outubro de 1987.
Estilo Neo-realismo
*
CANTOePALAVRAS
Latitude, 1950; Noite de Pedra, 1955;
Noite de Pedra, 1959;
Noite de Pedra, 1959;
Livro de Andar e Ver, 1976; Linhas do Trópico, 1977;
Rosto por Dentro, 1992; Livro da Paixão- para
Ler e Contar, 1986 . . .
*
I
Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste
-
Aqui
onde o dia mal nascido
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido . . .
-
Bem haja a mão que te criou!
olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
" Uma Bicicleta Desenhada na Cela "
*
II
Noite de pedra
-
Cerração de muros
Arames farpados
Grades de ferro
Cruzes de ferro
Nas campas rasas
Duma luz morta
-
E a lua os cornos da lua
Uma baioneta calada.
-
Noite de pedra noite forjada
para que o silêncio esmague
O coração dos homens.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
" Noite de Pedra "
*
III
Lá, na última das celas
nódoa negra de açoites,
não há dias, não há noites
porque as noites têm estrelas.
-
Lá, só há sombra que dói.
Sombra e brancura dum osso
que o preso remói, remói
no fundo do seu poço.
-
Lá, quando o vierem buscar
amanhã, depois ou logo,
terá na lama mais um fogo,
mais chama no olhar.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
"Segredo"
Ciclo de Pedras
*
IV
Do rosto da luz e do ocre
o ouro nasce das paredes
sem grito
sem sombra
sem febre
apenas habitando o dia
de rua breve
-
Aqui, amor, uma palavra tua
palavra de água
pluma dum sopro
limo de segredos
raiz dum gesto
vê-los-ia em torno dos sentidos
como anel nos dedos.
-
Aqui, amigos, a palavra lima
limando o desejo nos dentes
(liberdade amor viagem)
nitidamente encontraria
profunda moldagem
acerada grafia.
-
Aqui
indústria das formas respiradas
( o vento na íris da asa dum besouro)
porque o silêncio é fábrica
e o ar é de ouro.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
"Do Livro de Andar e Ver"
*
III
Lá, na última das celas
nódoa negra de açoites,
não há dias, não há noites
porque as noites têm estrelas.
-
Lá, só há sombra que dói.
Sombra e brancura dum osso
que o preso remói, remói
no fundo do seu poço.
-
Lá, quando o vierem buscar
amanhã, depois ou logo,
terá na lama mais um fogo,
mais chama no olhar.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
"Segredo"
Ciclo de Pedras
*
IV
Do rosto da luz e do ocre
o ouro nasce das paredes
sem grito
sem sombra
sem febre
apenas habitando o dia
de rua breve
-
Aqui, amor, uma palavra tua
palavra de água
pluma dum sopro
limo de segredos
raiz dum gesto
vê-los-ia em torno dos sentidos
como anel nos dedos.
-
Aqui, amigos, a palavra lima
limando o desejo nos dentes
(liberdade amor viagem)
nitidamente encontraria
profunda moldagem
acerada grafia.
-
Aqui
indústria das formas respiradas
( o vento na íris da asa dum besouro)
porque o silêncio é fábrica
e o ar é de ouro.
*
LUIS VEIGA LEITÃO
"Do Livro de Andar e Ver"
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»1178«
MÁRCIO SAMPAIO
Nasceu em 1941, Santa Maria de Itabira,
Estado de Minas Gerais, Brasil.
Um dos fundadores do "Grupo Ptyx", de Literatura e
Arte, 1963 . . .
Homenagens: Prémio "Cidade de Belo Horizonte", 1963,
1971 e 1974; Prémio "Cláudio Manuel da Costa", 1964
e 1965; Prémio "Concurso Nacional de Poesia Falada",
1974, Varginha, Minas Gerais, Brasil . . .
*
CANTOePALAVRAS
13º. Signo, 1963; Rubro Apocalíptico, 1964;
O Ciclo de Barro, 1965; O Tempo em Minas,1974;
Paisagem Mineira(ensaio), 1977; A Paisagem nossa de
cada Dia(ensaio), 1998; Risco de Vida, 2000 . . .
*
1. Allegro
Entre Mozart e a mosca
um guarda-chuva, nuvem imprecisa.
Entre a brisa e o Sol
um caracol, móvel montanha.
Dentro de Minas a moça
costurando a história:
- o tecido esgarçado
remenda-se logo
na luz provisória.
2. Andante
Entre a náusea e a várzea
um vagalume, olho indeciso.
Entre a missa e o salto
duro respaldo, muda barganha.
Entrementes, a moça
espia a ruína:
- o olho de louça
transfunde a noite
em doce açoite.
3. Rondó
Entre choques de volques
um agro nome, travo impreciso.
Entre o colt e o alvo
um corpo ágil o ar assanha.
Entre risos finos, a moça
afixa o aviso:
- Entre os saldos
fabricam-se sonhos
com sangues e guizos.
(APLAUSOS)
É a noite entrando
no ouvido, quando:
tudo se funde
(musgo e moça)
no zzz da mosca.
*
MÁRCIO SAMPAIO
"Sonata"
Antologia
▬▬
»1179«
HÉLIO LOPES
Nasceu a 19 de dezembro de 1919, signo de sagitário,
Eugenóplis, Estado de Minas Gerais, Brasil.
Professor em diversas Universidade do Brasil, poeta
participou em várias revistas . . .
Homenagens: Prémio "Erico Verissimo", da Associação
Brasileira de Letras" A.B.L..
Faleceu em 1992.
*
CANTOePALAVRAS
Invulnerável Pássaro, 1974; Divisão das Águas, 1979;
Água Emendada, 1981; Introdução ao Poema Vila Rica, 1985;
Cantigas do Meu Bairro, 1987; Terraços da Abite;
Cântico dos Cânticos . . .
*
I
No incêndio das estrelas
consumi os olhos.
Tateio no chão das ventanias
o passo do anjo.
-
entre as minhas mãos,
a tua face -
rosa dos ventos -
e sentirei glícinias e agapantos,
noturnas claridades.
-
Quem me carregará para a outra margem
senão o teu amor?
-
As palmeiras repousaram a amanhã
Aliocha*
No asfalto resvalam salamandras
com olhos de bistre.
-
Nos lábios o sonho
nas mãos o espelho.
*
( Aliocha* personagem que, no romance
de "Dostoiesvski", escritor Russo, exprime o anseio
pela santidade).
*
HÉLIO LOPES
"XIX"
Invulnerável Pássaro
*
II
Pastor, a Flauta
acordei saudade nos pássaros.
Será da alvorada
o segredo acendendo na prata
cintilações de azul?
-
A Rosa
beija o silêncio da noite
e arranca das estrelas,
o orvalho do verão
nas águas do rio
a árvore jogou
a ponte de sombra.
*
HÉLIO LOPES
"V"
Invulnerável Pássaro
▬▬
»1180«
NELSON ASCHER
Nasceu em 1958, cidade de São Paulo, Brasil
Jornalista, Poeta . . .
*
CANTOePALAVRAS
Ponta da Língua, 1983; Sonho da Razão, 1993;
Algo de Sol, 1996; Parte Alguma, 2005 . . .
*
Tomado que eu estava pelo
trabalho a contragosto,
não sei se me causava mais
prazer ou mais desgosto
o raio que arranhava, arisco
que nem gato, o meu rosto.
-
Obsesso que eu estava em meio
do que fora proposto,
não sei o que me parecia
- mais anjo ou mais encosto -
o raio com que se irritava
alérgico o meu rosto.
-
Imerso que eu estava menos
no breu que num aposto,
não sei se vinha da manhã
ou viera do Sol posto
o raio - inseto que picava
com seu ferrão meu rosto.
*
NELSON ASCHER
"Manhã"
Algo do Sol
▬▬
»1181«
SILVIANO SANTIAGO
Nasceu a 29 de setembro de 1936, signo de libra,
Formiga, Estado de Minas Gerais, Brasil.
Poeta, contista, ensaísta, romancista . . .
*
CANTOePALAVRAS
O Banquete, 1970; Salto, 1970; O Olhar, 1974;
Em Liberdade, 1982; Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina, 1988; O Cheiro
Forte, 1993; Heranças, 2008 . . .
*
I
Não podendo xingar
O patrão que o rouba,
O operário xinga os juízes da partida
E procura espancá-los,
Como se o bandeirinha mais próximo
Fosse o procurador da prepotência . . .
Oswaldo de Andrade 1943.
*
SILVIANO SANTIAGO
"Futebol"
Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina
*
II
Falam alto e ninguém escuta.
Põem-se a gritar
E todos tapam os ouvidos
-
De repente - é 1945 -
Tudo é permitido
E começar a falar baixo e confuso.
-
Abraçar os limites do grito
-escreveu Paul Eluard.
*
SILVIANO SANTIAGO
"Liberdade"
Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina
*
III
Todas têm os gestos
Estereotipados e sentimentais
De maternidade vicária:
A tia, a madrinha, a vizinha,
A irmã mais velha, a babá
A madrasta. etc.
-
A criança apenas pergunta:
O que é mãe:
O que é amor?
*
SILVIANO SANTIAGO
"Palavras Abstratas"
Crescendo Durante a Guerra
Numa Província Ultramarina
▬▬
▬▬
»1182«
Nasceu a 27 de março de 1937, signo de áries.
Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil.
Doutorou-se na Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1969. Poeta, jornalista e
Professor, viajou por vários países leionando.
Encontro de Poetas de Língua Latina, 1987, México;
Festival Gerald Hopkins, 1996, Irlanda; Centenário
de Neruda, 2004, Chile; Festival Internacional de Poesia
pela Paz, 2005, Coreia . . .
Homenagens: Prémio "Mário de de Andrade" Instituto
Nacional do Livro; Prémio Pen-Club; Prémio União Brasileira
de Escritores; Prémio "Estado de Guanaba" . . .
*
CANTOePALAVRAS
O Desemprego da Poesia, 1962; Canto e Palavra, 1965;
Poesia sobre Poesia, 1975; A Grande Fala do Índio, 1978;
Que País é Este?, 1984; Catedral de Colônia e Outros Poemas, 1985 . . .
*
I
aquele espanto
que eu, moreno brasileiro,
conheça não apenas os Concertos de Branderburgo,
mas na adolescência, além de Mozart
cantasse Josquin du Pès, De Lassus, Jannechin, Scarlatti e os renascentista ingleses.
-
Só agora entendo por que
tanta música nas bíblias de minha infância:
- é que o demônio é ambíguo
e pode estar no corrosivo silêncio
e no insidioso ruído.
-
todas as manhãs
toco um concerto de flauta e clarineta para minhas plantas.
Elas já sabem, e esperam
- o seu café da manhã.
-
Minha mulher, melhor que eu,
com a alma aberta na varanda
sabe conversá-las, sabe tangê-las,
tricar-lhes a fraldas e o alpiste
com seus olhos em ciranda.
-
Não é de hoje
que a música cura e ensandece os reis.
Então, não foi assim que Ulisses se curou
dos dentes do javali? Não era assim
que apaziguavam a fúria de Saul
a harpa e o canto do pastor David?
-
Tal a consabida
estética medicinal
ou homeopatia musical
romântica:
Violinos para hipocondríacos,
contrabaixo para os nervosos,
a histeria é com a harpa,
a flauta refaz pulmões,
trombone contra a surdez,
orgão para irascíveis,
a trompa aos perseguidos,
e como tônico geral
meu instrumento de fé
- o oboé.
-
- Ocorreria sangue nos becos
se à noite tocassem Mozart
e o fagote dos barrocos?
-
- Já se usou um adágio de Corelli
para estancar no ar
o punho torturador?
-
- Quem jamais matou alguém
numa sala de concertos,
embora a ópera tenha
assassinos no libreto?
-
Soassem o oboé e orquestra de Marcello
na mesa do conselho e as tensões
se esvairiam e perdões se abraçariam,
e até flores, do acrílico ambiente, brotariam
soando a escala dos serenos violinos.
-
Ah, pureza alucinante do cego Rodrigo
- gentil-homem - dedilhando a escuridão
enquanto o Concerto de Aranjuez
me esfacela o coração.
-
A música expulsa da alma o câncer,
-
apazigua o mal patrão,
melhora o operário,
faz crescer as colheitas
e apascenta a criação.
-
Os que vão se amar um dia, já estão ouvindo acordes
a mesma ária de Bach.
-
Os que geram filhos, nomes, obras,
crescem com este adágio de Albinoni.
-
E até mesmo um povo escravo se livraria
se a Nona de Beethoven
lhes sasse todo dia
a ensinar que é em coro
que se constrói a alegria.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"Iniciação Musical"
Que País é Este?
(nomes de compositores, e obras, em destaque foram
feitos por mim).
*
II
Dizem os antigos:
- é preciso sonhar
para que o real se realize.
Então, desesperado, sonho industrial
nos fornos altos do dia, e à noite
sou o tecelão sózinho fiando um sonho novo.
-
sonhar é ciência que requer estudo. Escolar
releio o mundo e sonho com a história e o povo.
- Há um inquilinato dos sonhos? Desconfio,
pois há quem se instale no sonho alheio,
e aí reside até que venha o despejo ou desmonte.
-
- Há uma engenharia dos sonhos? Suponho,
porque há quem levante os escombros
do sonho alheio e o habite.
-
- Sonhamos alto? Sonhamos pouco?
Exercitamos o inconsciente dos gregos
numa olimpíada de loucos?
- É o sonho um palco improvisado
com cenário e atores convidados?
- Ou um afresco descascado urgindo restauração
num convento de desejos recalcados?
-
É o sonho um trompe-l' oeil, onde
quem está fora está dentro e quem está dentro
está por fora confuso e louco?
-
Como proteger o sonho em caixa-forte
contra gazuas e assaltos, e como evitar que nas ruas
escape do tiro e morte?
-
aprendeamos com os antigos muçulmanos,
essa raça acostumada a cavalgar no pêlo das miragens
plantando oásis no seco céu da boca dos camelos:
-
- quando o Sol do dia se transfoema em flor de fogo,
se deitam em alucinados tapetes na aragem
e vão abrindo seus desejos sob o feltro das tendas
e sombreando o seu deserto de imagens.
-
Na hora do combate, como sonhavam os generais antigos!
Um deles sonhou tão forte, que num sonho fez o exército
atravessar o rio
- e surpreender o inimigo adormecido.
Sabiam que uma guerra não se ganha só com lanças e gritos
- mas com sonhos ativos. Em tendas opostas
punham-se a sonhar, de monte a monte,
num tropel de imagens desesperadas
até que a madrugada jorrasse seus clarins
nas cores da alvorada.
-
Os muçulmanos antigos sonhavam
e destituíam políticos. Sonhavam
e libertavam os amigos. Sonhavam
e pagavam dívidas. E houve uma cidade
que de tanto sonhar inteira,
inteira, se libertou.
-
Então me indago do que sonhará meu povo,
se sonha pouco o meu povo,
se sonha,
o meu fraco povo.
-
Penso:
vai ver que sonhamos certo
e errada é a interpretação
Ou será que sonhamos sonhos
que não têm realização?
-
Déspotas!
Melhor não rir dos sonhos do poeta,
que um deles, estando preso
após compor uma epopéia sobre um exército de macacos,
foi libertado por sua armada imaginária
que convertendo o velho sonho num real novo
invadiu o reino e a torre
e o arrebatou
para o convívio simples de seu povo.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"Arte de Sonhar"
Que País é Este?
*
III
Daqui a um cem número de anos (prevêem os centistas)
A Terra estará coberta de gelo, convertida em desolada Antártica.
Ainda não se sabe se o frio virá aos poucos, definhando, recolhendo
e espiando os homens em suas tocas
ou de súbito congelará a bicicleta e o menino
o engenheiro em seus esquadros
o guarda em suas esquinas
e todas as letras e livros e estantes acumuladas desde a idade dos Sumérios.
-
Todas as palavras hirtas
as tábuas da lei, O Livro dos Mortos, O Alcorão, O Finnegans Wake - tormento enfim fossilizado
num planeta gélido ex-correndo no vazio.
-
Fria a letra, frio, talvez, o sentido
desses textos e o sangue das batalhas de Homero
e os álgidos tratados de ironia de todos os sábios e Cervantes
petrificadas e transparentes as enciclopédias
e os poemas de Li-Po e os escritos em rocha viva dos fenícios
toda pedra, enfim, onde uma só letra houver
espesso gelo descerá sepultando um Sol longínquo.
-
E assim pousadas (eternamente) aguardaremos
quem sabe um arqueólogo ou um deus silencioso
que roçando as asa sobre essas geleiras de vana verba
absorto se indagará: où sont les jeux d'antam?
e sobre as neves d'aujourd'hui irá lendo les chimères et les sagesses et les eternelles
e cauteloso, como convém ao sábio, irá colhendo a estória do perdido paraíso
o cântico dos cânticos, o realizado apocalipse
e só compreenderá o estranho ser humano
quando desse livro depreender a mensagem:
onde se leu fogo, leia-se água
onde se escreveu tudo, leia-se nada.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"A Letra e o Tempo"
Poesia sobre Poesia
*
IV
AVE! GARRINCHA
Ave humana
lépida
discreta
pés de brisa
corpo dúbio
finta certa.
-
Garrincha é como a aragem
Garrincha é como o vento
Garrincha é como a brisa
-
que ora avança
na cancha
com graça
e elegância
e rebate
o arremesso
e remata
no peito
e rechaça
a ameaça
da caça
que o caça
e enfim a embaraça
no drible-trapaça
que a prostra no chão.
Pés de brisa
corpo dúbio finta certa.
-
Garrincha é a ave
certa de seu vôo
Garrincha é a seta
certa de seu alvo
Garrincha é o homem
certo de sua meta.
-
Tendo as pernas curvas
e uma candura esquiva
no teu silêncio puro
a tua alma asinha
sabe sofrer na neve
o frio da andorinha.
-
Garrincha
ave incontida
e mal retida
nas gaiolas
do gramado.
-
Com endiabrados
dribles e disparos
com diabices raras
sobre a cancha
-
avança
a dança
e pula
e aduba
e açula
a alma do infeliz
que o perseguiu:
parou
pisou
passou
voltou
driblou
chutou
- gol do Brasil!
-
Pés de brisa
corpo dúbio
finta certa
Garrincha doravante
é ave nacional.
*
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
"Poema para Garrincha"
A Palavra
▬▬
»1183«
EDUARDO VALENTE SIMÕES
Nasceu em 1906, Cidade de São Paulo, Brasil . . .
*
CANTOePALAVRAS
Colcha de Retalhos, 1930; São Paulo Vos Saúda;
Fundo de Gaveta . . .
*
I
Nunca fui tão poeta como agora.
Por quê? Ora, porque! Estou amando.
A-man-do! E já se viu poeta que, quando
ama, não cante em verso oamor que mora
-
n'alma, que a incendeia e que a devora?
Ah! Tudo, tudo é uma voz cantando,
sussurrando, enleiando, enfeitiçando
sempre, de espaço a espaço, de hora em hora . . .
-
Inda há pouco escutei, por coincidência,
a voz de minha deusa. Então, ligeiro,
voltei-me para vê-la . . . Que alegria!
-
Mas durou pouco essa ilusão. A ausência
dela notei, e a rir de mim, brejeiro,
um raio alegre do Sol deste dia . . .
*
EDUARDO VALENTE SIMÕES
"dia de Sol"
Fundo de Gaveta
*
II
A minha voz em preces se desata
quando a Noite, viúva inconsolável,
descerra o negro véu tecido em prata
sobre a fronte serena, imperturbável.
-
Quando o Sol, meu irmão ditoso, à noite
se recolhe, em silencio me levanto
e, do vento abrigada ao rude açoite,
saio dentro da treva e canto, e canto . . .
-
E canto um cantochão dolente, irreal
e doce como a palidez de minha
face; e sei bem que nunca faço mal
em cantar pela noite além, sózinha.
-
Canto e ilumino a Terra à noite; canto
com a voz que Deus me deu; e mesmo a luz
que espalho furto-a eu, com grande espanto,
àquele que na treva me conduz.
-
Canto, e cantando vou servindo mal
a todos. Canto, e porque canto, vivo
triste, triste e sozinha . . . A luz irreal
que furtei, essa mesma é um bem esquivo
do qual infelizmente nada fica
sob os raios vivíssimos do Sol;
nem a intenção de quem se mortifica
em conservar as cores do arrebol . . .
*
EDUARDO VALENTE SIMÕES
"Canção da Lua"
Fundo de Gaveta
*
III
Poá. Um lugarejo de subúrbio.
Tudo simples, modesto, como a gente
modesta e simples que ali vive.
-
As casas térreas, sem andares, baixinhas.
O cinema inaugurado há pouco,
a estação da Central,
a igreja-nova sem reboco.
-
Em tudo a alma virgem da natureza:
os montes, as serras azuladas, transparentes,
a vegetação de um verde unânime,
num abraço afetuoso de proteção e carinho . . .
-
Anoitece.
O crescente é um berço de luar
que embala no céu as estrelas.
Lá dentro, no luar bondoso
que me acolheu,
um piano soluça
a "Sonata ao Luar" de Beethoven.
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EDUARDO VALENTE SIMÕES
"Sonata ao Luar"
Fundo de Gaveta
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